A era em que cagar matava
19 de abril de 2025
Durante séculos, a simples necessidade de cagar esteve associada a um risco real de adoecimento e morte.
Em tempos em que o conhecimento científico sobre doenças era incipiente e a infraestrutura urbana praticamente inexistente, o ato de defecar deixava de ser apenas uma função fisiológica, e sim um potencial catalisador de epidemias. O que hoje é um gesto banal, realizado (na maioria das vezes) em ambientes higienizados, foi, por muito tempo, um ato envolto em precariedade, ignorância e consequências fatais.
Nas sociedades antigas, especialmente nas cidades densamente povoadas, o destino dos dejetos humanos era um problema constante e mal resolvido. Os sistemas de escoamento, quando existiam, eram rudimentares e frequentemente insuficientes. Mesmo nas grandes civilizações, como Roma, cujos aquedutos e latrinas públicas foram considerados avançados para a época, o tratamento dos resíduos não impedia a contaminação das águas.
Com o passar dos séculos e o crescimento desordenado das cidades europeias durante a Idade Média e o início da Era Moderna, a situação se agravou. O aumento populacional nas áreas urbanas não foi acompanhado por soluções sanitárias eficazes. Em muitos locais, as pessoas utilizavam penicos que, após o uso, eram esvaziados nas ruas, valas ou rios próximos. Os resíduos acumulavam-se em ambientes onde circulavam pessoas, alimentos e animais.
O contato constante com fezes humanas criava um cenário ideal para a proliferação de doenças. Rios contaminados tornavam-se fontes de água para beber, cozinhar e lavar utensílios. A água poluída era ingerida sem nenhum tipo de tratamento, levando à disseminação de enfermidades como cólera, febre tifóide, hepatite A, disenteria e diversas parasitoses intestinais. Essas doenças não apenas matavam, mas o faziam em grande escala.
Epidemias varriam bairros inteiros, atravessando fronteiras e devastando populações urbanas. Os surtos de cólera do século XIX, por exemplo, foram responsáveis por centenas de milhares de mortes apenas na Europa. E ainda assim, as autoridades muitas vezes não sabiam como agir. A ausência de compreensão sobre os mecanismos de transmissão dessas doenças contribuía para sua persistência. Até a metade do século XIX, a teoria dominante era a do miasma, que atribuía a origem das enfermidades a vapores pestilentos vindos de matéria em decomposição. Acreditava-se que o mau cheiro das fezes e do lixo era o causador direto da doença, e não os microrganismos invisíveis presentes na água e nos alimentos contaminados.
Foi apenas com o surgimento da microbiologia e das investigações pioneiras de médicos como John Snow, que a relação entre esgoto e doença começou a ser compreendida. Durante a epidemia de cólera de 1854 em Londres, Snow observou que os casos estavam concentrados ao redor de uma bomba de água específica. Ao isolar essa fonte e interromper seu uso, os casos diminuíram drasticamente, indicando que a água era o veículo de transmissão. Esse episódio foi um marco no desenvolvimento da saúde pública moderna. Ele ajudou a romper com a teoria dos miasmas e a estabelecer a importância da higiene, do controle sanitário e do fornecimento de água potável. A partir daí, medidas estruturais começaram a ser adotadas em várias cidades do mundo ocidental, ainda que de forma desigual e gradual.
A construção de sistemas de esgoto subterrâneo, estações de tratamento de água e a regulamentação do descarte de resíduos marcaram uma das maiores conquistas da civilização moderna. Tais avanços contribuíram para a drástica redução de doenças infecciosas ligadas ao contato com fezes e transformaram os centros urbanos em ambientes mais seguros para a convivência humana. Contudo, os benefícios dessa revolução sanitária não chegaram a todos ao mesmo tempo. Enquanto as nações industrializadas começavam a erradicar surtos de doenças diarreicas no início do século XX, grande parte do planeta ainda permanecia vulnerável.
Em muitas regiões da Ásia, África e América Latina, a ausência de banheiros e o uso de fossas rudimentares mantinham os mesmos riscos que haviam assolado a Europa nos séculos anteriores. Mesmo hoje, a crise sanitária continua a ser um desafio global.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 3,6 bilhões de pessoas ainda vivem sem acesso a sistemas de saneamento seguros. Isso inclui desde comunidades rurais isoladas até grandes aglomerados urbanos que cresceram sem planejamento básico. Nessas regiões, defecar ao ar livre ainda é uma prática comum, com todas as consequências sanitárias que isso acarreta.
As crianças são as principais vítimas. A diarreia causada por água contaminada continua sendo uma das maiores causas de mortalidade infantil em diversos países em desenvolvimento. O que mata não é apenas a desidratação, mas a repetição constante de episódios que enfraquecem o organismo, dificultam a absorção de nutrientes e abrem caminho para outras infecções.
A falta de saneamento também agrava desigualdades sociais. Mulheres e meninas, por exemplo, enfrentam riscos adicionais quando não têm acesso a banheiros adequados, especialmente em ambientes públicos ou escolares. A ausência de privacidade e segurança pode afetar diretamente a frequência escolar, o acesso ao trabalho e a dignidade pessoal.
Então, pensemos: será que realmente superamos, como humanidade, os problemas vividos há séculos? Será que algum dia vamos superá-los?